Ao longo do último século, as mulheres tem tomado cada vez mais espaço na sociedade. As mulheres conquistaram seu espaço na política quando conseguiram, através de muita luta, o direito de votar e o direito de ser político e ter cargos nos escopos que regem um país. Conquistaram seu espaço na academia quando conseguiram o direito de entrar numa faculdade e ir além das profissões tidas como femininas. Conquistaram seu espaço no mercado de trabalho, mas, apesar de todas as conquistas, a luta continua. Apesar das noções de igualdade e equidade terem se difundido, como um todo, em todo o ocidente quando se fala de gênero, há muito o que se fazer ainda. 
E quando falamos de futebol, a luta parece distante de terminar.

O futebol foi tido, por anos, como um meio predominantemente masculino. E com isso, o futebol se apresenta (no presente, infelizmente) como um meio predominante machista. Desde pequenas somos ensinadas, não só na educação familiar, como na educação formal, aquela que recebemos nas escolas, que o futebol é coisa de menino. Quem nunca teve aquele professor de educação física que dava uma bola de futebol para os meninos e deixava com que a gente arrumasse o que fazer com aquelas bolas murchas (que, muitas vezes, virava a arma na brincadeira da "queimada") ou que nos divertíssemos pulando corda, afinal, isso era brincadeira de menina? Desde nossa primeira infância fomos socializadas dessa forma. Somos levadas a acreditar que não podemos gostar de algo que é de menino, não podemos jogar um esporte que é de menino, para menino. Não só nós, como todo mundo. Faz parte do imaginário popular a crença de que futebol não é esporte para mulher e que o nosso lugar é bem longe da arquibancada.

E, se ousarmos nadar contra a corrente, somos questionadas e temos nossa paixão por nosso time e pelo esporte como um todo posta em dúbio com questões que, eu aposto, vocês não fazem numa mesa de bar para o amigo do seu amigo que se juntou a vocês para assistir uma rodada no fim de semana.

Inclusive, eu tive um professor de educação física que foi muito além do que me deixar brincar apenas de pular corda ou queimada.

Eu nunca vou me esquecer do momento em que, na sétima série, em um momento de descontração na sala de aula, logo no fim do período e do dia, um professor me olhou com cara de deboche e, até mesmo, desprezo quando eu disse que gostava de futebol e logo me questionou sobre “O que é impedimento, então?” na frente de toda a sala, na frente de todos os meninos. Foi o primeiro de muitos comentários do tipo desde que passei a assumir, publicamente, o quanto eu sou apaixonada pelo esporte entre quatro linhas onde uma bola é chutada por vinte e dois pares de pernas a fim de entrar em um gol e o quanto eu amo aquele time do Parque São Jorge.

Foi ali que eu descobri, então, que mulher não pode gostar de algo que, originalmente, pertence ao mundo masculino. 
Se diz que gosta, quer chamar a atenção – deles, óbvio. Afinal, tudo o que fazemos tem uma única premissa: chamar a atenção deles, né?
E se gostar, tem que provar. 
Futebol é o esporte mais popular do mundo. O esporte mais popular do Brasil. Brasil esse que conta com uma população feminina gigantesca – e maior que a masculina, de acordo com o PNAD/2014. E, mesmo assim, ser mulher e gostar de futebol parece uma afronta gigantesca. É quase como um crime, uma ofensa, uma barbárie.

Eu não quero chamar a atenção de ninguém. Eu não quero ser aceita na roda do boteco dos meus amigos homens. Eu nunca quis, pra ser sincera. Eu gosto de futebol porque é algo MEU, algo que cresceu COMIGO, é algo que me encanta e me fascina completamente – desde o esporte em si e suas aplicações, regras, jogos, negociações etc até a torcida e a forma que amor e apoio incondicional são demonstrados de forma cabal e corriqueira o tempo todo por pessoas que talvez nem se conheçam, mas partilham da mesma união e sentimento e que, naqueles noventa minutos (noventa e cinco, vai, contando com os acréscimos) – e não porque quero e preciso da aprovação e atenção de terceiros. 

O episódio da sétima série que aconteceu comigo foi o meu primeiro contato com o machismo, mesmo que, na época, eu não tivesse ideia do que era isso. Foi a primeira vez que um homem me humilhou por ser mulher e falar algo que foge a regra. Foi a primeira vez que eu fui exposta por ser garota e gostar de futebol, a primeira vez de muitas. 
E hoje, com a bagagem que eu tenho hoje, eu entendo o porquê daquilo ter acontecido comigo. Eu entendo o porquê do questionamento do meu professor, em tom de piada. Eu entendo o porquê da minha exposição, como se eu fosse um Judas pronto a ser malhado. Eu fugi à regra naquele momento.

Como pode ser mulher e gostar de futebol? 
Como pode ser mulher e saber o nome de toda a escalação do seu time num título conquistado há 80 anos atrás? 
Como pode ser mulher e ir num estádio sozinha, sem ter que ser arrastada pelo pai ou algo do tipo? 
Como pode ser mulher e dizer que gosta de futebol e ainda sair dizendo que não quer atenção e aprovação de homem? 
Como pode ser mulher, gostar de futebol e dizer que isso não se dá pelos jogadores? 
Ah, gosta de futebol e é mulher, com certeza é “maria chuteira”. 
Caraca, que absurdo ser mulher e gostar de futebol!

“Você não gosta de futebol porque teu pai te influenciou a isso?”, perguntaram, também, em algum momento da minha vida. Pelo visto, uma mulher gostar de futebol não pode ser algo voluntário. O imaginário coletivo acredita que a mulher gosta de futebol porque somos influenciadas pelos homens das nossas vidas a isso.
Não. Eu cresci numa casa integralmente feminina – sem pai ou padrasto. Não tive influencia masculina alguma nisso. Por que meus gostos têm de ser influenciados por homens, também? Eu não posso gostar de algo por mim mesma?
 
Isso tudo faz parte daquele machismo que parece inofensivo, mas está introjetado de maneira sutil na sociedade e molda cada pensamento, cada ato, cada discussão. Em como ser mulher e gostar de futebol soa como uma agressão horrível e algo completamente fora do normal, ao invés de algo normal. E é como diálogos como “tá querendo atenção” ou como a mulher só pode ser ligada ao futebol se estiver semi nua, com um corpão escultural e atendendo a todos os padrões de beleza entram numa normatividade ridícula, não conseguindo atrair uma reflexão adequada sobre o assunto – que é importante, também. 

Vivemos um momento histórico importantíssimo. A presença feminina no futebol (tanto como jogadoras, parte de comissão técnica, na torcida, na organização dos clubes, nos trabalhos dentro e fora de campo, como atleta ou profissional) vem sendo cada vez mais reinvindicada por nós, mulheres. A luta pela equidade finalmente chegou aos estádios - e diretorias, torcidas, vestiários - e estamos cada vez mais engajadas e unidas em combater o machismo dentro e fora do campo. Estamos prontas para torcer e trabalhar com o futebol e para termos nosso espaço junto ao esporte sem termos nosso conhecimento e amor postos à prova apenas por sermos mulheres.

Afinal, a mulher pode gostar do que ela quiser, quando ela quiser, onde ela quiser, inclusive de futebol.