Dedo na ferida: a necessidade de desfiles críticos no Carnaval
Foto: Dhavid Normando/Riotur

O Carnaval do Rio de Janeiro entrou para a história! Na verdade, veio da história. Em meio a um caos social vivido no Brasil, pra muitos, o Carnaval são quatro dias de festa, onde esquecemos todos os problemas políticos, sociais e até mesmo pessoais. Pois bem, isso não aconteceu em 2018. Escolas do Grupo Especial fizeram - e, muito bem feito - o papel social que uma escola de samba tem que fazer.

Com enredos críticos, quatro agremiações optaram em deixar as homenagens de lado, tocaram o "dedo na ferida". É claro que belas homenagens a culturas, povos e astros são bem vindas. Mas, num momento onde a sociedade está sedenta por gritar contra alguma coisa, as escolas de samba estiveram lá, fazendo tal papel e resgatando a premissa do Carnaval.

Há tempos, não vimos enredos tão críticos. Nos anos 60 três enredos marcaram a, talvez, fase mais turbulenta da história contemporânea brasileira: a ditadura militar. O primeiro se viu em 1967, quando a Salgueiro desfilou "A história da liberdade no Brasil". Dois anos depois, o Império Serrano falou sobre os "Heróis da Liberdade". Em 1972 foi a vez da Vila Isabel cantar, em um desfile memorável,  "Onde o Brasil aprendeu a liberdade". Em anos sombrios, onde a censura era a principal marca brasileira, as escolas de samba demonstraram coragem. Mais de quarenta anos depois, essa coragem voltou. E, na hora certa! 

Paraíso do Tuiuti e seu enredo necessário 

Em 2018, se "comemora" 130 anos da Lei Áurea, tornou-se necessária a abordagem. “Comemora”. Aspas. Indagação. É isso que o carnavalesco Jack Vasconselos propôs com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. Uma crítica atemporal sobre o quão a marca escravista é presente hodiernamente. A agremiação de São Cristóvão fez um desfile arrebatador e surpreendente criticando as condições de trabalho no Brasil e o atual governo, responsável pela reforma trabalhista, aprovada no ano passado. 

A Tuiuti iniciou seu desfile mostrando a "liberdade" dos escravos saídos da senzala açoitados e finalizou sua apresentação com alegoria que carregava um vampiro com faixa presidencial, em referência a Michel Temer. O ator se posicionava em cima do chamado "neo tumbeiro", um navio negreiro dos dias atuais, além das críticas à manipulação da população. A escola emocionou a Sapucaí. Não só porque fez um desfile tecnicamente correto e com fantasias bem desenvolvidas. Mas porque bradou o que a grande maioria dos brasileiros precisam e querem gritar. A Paraíso do Tuiuti fez história! 

A Mangueira e sua crítica direcionada 

A Mangueira foi à Sapucaí cantando e contando o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco”. O tema desenvolvido pelo carnavalesco Leandro Vieira foi divulgado pouco tempo após o anúncio de cortes de verbas ao Carnaval feito  por Marcelo Crivella. Todos sabiam que a Mangueira iria criticar, de maneira direta, o atual prefeito da cidade. Ninguém imaginava como. 

O que se viu no desfile da Mangueira, acima de qualquer crítica, foi um pedido de respeito ao povo do samba. "Outrora marginalizado, já usei cetim barato pra desfilar na Mangueira" . A frase forte de seu belo samba enredo lembrava a marginalização do samba durante a década de 40. Sua comissão de frente, trazia grades que impedia o povo de pular o Carnaval, a maior festa da cultura popular. 

Leandro Vieira abusou nas homenagens aos blocos de rua e personagens históricos do Carnaval, como Zé Pereira e Tia Ciata. Fechou sua apresentação com um grande "bloco do sujo" em homenagem aos carnavais de rua, onde mesmo sem glamuor, há diversão. “Se faltar fantasia, alegria há de sobrar... Bate na lata pro povo sambar”.

A Mangueira criticou Crivella de forma direta, claro. Com alegorias contendo frases como "Prefeito, pecado é não brincar o Carnaval" e "Olhai por nós, o prefeito não sabe o que faz" - em referência à histórica alegoria censurada de Joãosinho Trinta - fez com que o povo bamba pudesse gritar em prol de seu maior bem, contra o retrocesso e a marginalização. Afinal, “Chegou a hora de mudar, erguer a bandeira do SAMBA”.  

Gabriel Monteiro/Riotur
Gabriel Monteiro/Riotur

Portela e a referência à imigração 

A azul e branca de Madureira busca o bicampeonato falando sobre a imigração. Tema atual, pertinente e pouco explorado. Sendo uma rainha do Carnaval Carioca, Rosa Magalhães sobre explorar o enredo como ninguém. Realizou desfile tecnicamente impecável e emocionou a Avenida. 

Com o enredo "De repente de lá pra cá e dirrepente daqui pra lá", a Portela vai levar para a Sapucaí a história dos judeus que deixaram a Europa durante a Inquisição, se estabeleceram no Nordeste do Brasil e, depois da expulsão dos holandeses, em 1654, foram para a América do Norte. No caso, para Nova York, ainda chamada de Nova Amsterdã. Uma história dolorosa mas que precisa ser bem contada e cantada. E foi. Com um samba leve e de fácil memorização, a Portela fez a Sapucaí se encantar com seu brilhante enredo. 

Gabriel Monteiro/Riotur
Gabriel Monteiro/Riotur

Beija-Flor contra a corrupção 

A Beija-Flor de Nilópolis era, sem dúvidas, uma das mais aguardadas para passar na Marquês de Sapucaí. Não só pela sua tradição de ótimos carnavais. Mas sim, porque prometia realizar um desfile altamente politizado e crítico. Usando a inspiração da obra de Mary Shelley, que completa 200 anos, usou a estória do filho abandonado pelo próprio pai para subverter nossas visões de mundo onde o Brasil fazia o papel paterno e os brasileiros se caracterizavam pelos filhos abandonados. 

Com um forte samba enredo, a Beija-Flor criticou abertamente o abandono social que vive o brasileiro ao cantar "Meu canto é resistência no ecoar de um tambor. Vêm ver brilhar mais um menino que você abandonou". A escola trouxe em seus carros alegóricos um protesto contra a violência nas ruas, as mortes de policiais e o descaso na educação brasileira, por exemplo. 

A escola de Nilópolis criticou também a corrupção brasileira. Levou à Avenida uma alegoria em referência à Petrobrás e uma ala que ironizava Sérgio Cabral, ex governador do Rio de Janeiro e preso na Operação Lava Jato. O desfile repleto de protestos fez os mais saudosos se lembrarem das apresentações épicas comandadas por Joãosinho Trinta que ficou mundialmente conhecido com o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, ele criticou todo o lixo existente no luxo e o caos social brasileiro outrora vivido. 

Gabriel Monteiro/Riotur
Gabriel Monteiro/Riotur

"Ganância veste terno e gravata onde a esperança sucumbiu. Vejo a liberdade aprisionada. Teu livro eu não sei ler, Brasil". A crítica da Beija-flor também se fazia necessária. Fez com que o povo se identificasse rapidamente com o samba e protestasse, em forma de carnaval, junto com Neguinho da Beija-flor. Não a toa, a Avenida foi tomada após o desfile da Azul e Branca de Nilópolis. 

Foi histórico e necessário presenciar enredos críticos, fazendo-nos relembrar de carnavais antigos, onde as escolas de samba faziam, com louvor, seu papel social. O samba cura! É a "voz do povo". "O samba faz essa dor dentro do peito ir embora. Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola". 

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