Boa parte da comunidade científica internacional garante a existência da Pangeia, um supercontinente que teria se formado no planeta Terra há mais de 200 milhões de anos. Nesta massa terrestre, o contorno do Brasil se encaixaria perfeitamente ao do continente africano. E parece que Brasil e África, separados pelo oceano, voltam a se unir durante o carnaval carioca. Nos desfiles da Série A deste ano, três agremiações levarão à Marquês de Sapucaí enredos diretamente ligados à cultura e religião africanas. O Império da Tijuca versará sobre Obaluaiê, um dos orixás mais cultuados no candomblé brasileiro. A Alegria da Zona Sul contará a história de Luiza Mahin, negra escravizada que se tornou um ícone da revolta dos malês, na Bahia do século XIX. Já a Unidos de Bangu irá celebrar os reis e rainhas africanos que vieram ao Brasil durante o período da escravidão.
Alguns outros enredos podem não tratar diretamente das culturas do continente, mas fazem referência. A Acadêmicos do Sossego, de Niterói, falará sobre diversos tipos de rituais sagrados pelo mundo, entre eles os de matrizes africanas. Vizinha da mesma cidade, a Acadêmicos do Cubango contará a história do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, personagem negro importante da história das artes plásticas brasileiras. Já a Inocente de Belford Roxo tem o município de Magé como enredo, e mostrará os elementos africanos presentes na história da cidade fluminense.
Império da Tijuca
Elaborado pela dupla de carnavalescos Jorge Caribé e Sandro Gomes, o enredo da escola tijucana é história mitológica de Obaluaiê, orixá do candomblé que é apresentado coberto sobre palhas. No enredo, o ponto de convergência entre a história de Obaluaiê e o Império da Tijuca é a formiga, nome do morro da escola: os carnavalescos contam que entre o povo iorubá, o inseto é quem representa o orixá, uma vez que é uma divindade da terra.
Para o Império da Tijuca, falar de África é estar em casa. A agremiação do Morro da Formiga tem a tradição de levar à Sapucaí temas relacionados com a cultura e a história do continente. Só nos últimos oito carnavais foram quatro vezes: em 2010, a Verde e Branco da Tijuca contou a história de Njinga, rainha de Angola. Em 2013, o título da Série A veio com uma homenagem às mulheres negras em ‘Negra, Pérola Mulher’. Em 2014, já no Grupo Especial, o enredo ‘Batuk’ falou sobre a história dos instrumentos percussivos africanos. No ano seguinte, de volta ao grupo de acesso, uma saudação a Oxum.
Alegria da Zona Sul
Com o enredo “Bravos Malês! A saga de Luiza Mahin”, Marco Antônio Falleiros, carnavalesco da escola do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, apresentará a história da mulher que se tornou símbolo de uma das maiores revoltas populares do Brasil.
Nascida no Daomé, atual Benim, Luiza Mahin veio ao Brasil escravizada, mas comprou sua alforria em 1812. Na Bahia, trabalhou como quituteira. Debaixo dos quitutes, deixava mensagens em árabe, e assim se tornou uma das lideranças da Revolta dos Malês (1835), um levante dos negros muçulmanos de Salvador contra o contexto social de escravidão. A revolta, acontecida entre 24 e 25 de janeiro, contou com mais de 600 escravos.
Em 2011, a Alegria da Zona Sul levou à avenida o enredo sobre Xangô. Em 2016, outro orixá, Ogum, foi o tema da agremiação.
Unidos de Bangu
“A travessia da Kalunga grande e a nobreza negra no Brasil”. O enredo da Unidos de Bangu, pensado pelo consagrado carnavalesco Cid Carvalho, é uma saudação aos reis e rainhas dos povos africanos que cruzaram o oceano Atlântico para servirem de escravos no Brasil, em momentos distintos dos quase 400 anos de escravidão dos negros no país.
O desfile passará pela história de nomes como Agotime, rainha em Daomé que foi trazida como escrava ao Brasil, Chico Rei, negro escravizado que escondeu gramas de ouro entre os cabelos para comprar sua alforria, e o próprio Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo da história da escravidão brasileira. Curiosamente, os três personagens já tiveram suas histórias contadas no carnaval carioca: Agotime foi enredo da Beija-Flor, em 2001, e Chico Rei (1963) e Zumbi (1960) foram personagens do Salgueiro, ainda na década de 1960.
Coincidência ou não, os enredos com temática africana têm sido cada vez mais frequentes no Carnaval carioca, no mesmo momento em que as igrejas neopentecostais ganham milhares de adeptos ano após ano. Se esta disputa tem um símbolo, ele está na dificuldade das escolas da Série A de receberem os repasses financeiros garantidos pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella.