O que o Dr. Frankenstein e o Brasil atual poderiam ter em comum? É o que a Beija-flor quer mostrar ao público no desfile de 2018, com enredo inspirado na obra de Mary Shelley que completa 200 anos de seu lançamento.

Com um enredo altamente politizado, a azul e branca de Nilópolis promete usar a estória do filho abandonado pelo próprio pai para subverter nossas visões de mundo e sacudir a Marquês de Sapucaí. Ao afirmar que “Monstro é aquele que não sabe amar”, levanta bandeira contra o abandono e propõe uma reflexão do que seria a verdadeira monstruosidade: nossa incapacidade de lidar com o diferente.

Logotipo oficial do desfile divulgado pela escola. Foto: Instagram/beijafloroficial

Ao retornar para a Beija-flor em 2017, o carnavalesco Cid Carvalho prometeu uma mudança radical não só na estética da escola, mas também com um enredo que seria fruto de muito estudo. Antes mesmo da realização do desfile, pode se ter uma ideia de que a promessa deverá ser cumprida. O abandono abordado pela escola é muito mais profundo do que pode parecer em um primeiro olhar: ele se trata também da desigualdade social, da intolerância religiosa e dos demais preconceitos sofridos por aqueles abandonados pela pátria brasileira, como o “monstro” foi pelo seu pai e criador.

Destaques e promessas de um desfile crítico

Confirmando o teor crítico do desfile, o carro abre-alas deverá abordar a situação política do país, citando os casos de corrupção da Petrobras por meio de caveiras que saem de barris de petróleo - sem deixar faltar as referências às obras de Mary Shelley. Ainda nas alegorias, uma personalidade LGBT poderá marcar presença: a cantora Pabllo Vittar. A drag queen deve vir como destaque de um carro criticando a intolerância nos estádios de futebol.

A divulgação das alas comerciais, ou seja, alas cujas fantasias são vendidas, também deu mais sugestões sobre o que podemos esperar: uma das alas associa a imagem de políticos a vampiros, enquanto a outra aborda a intolerância religiosa. Vale lembrar que, no carnaval passado, fantasias foram um tema sensível para a agremiação de Nilópolis. Os jurados não receberam bem o modelo “sem alas”, dando à escola um amargo 9,7 que acabou sendo descartado.

Desfile de 2017 quebrou a estrutura tradicional de divisão por alas. Foto: Blog Cristiano Alvarenga

Os desfiles patrocinados garantiram títulos em 2004, 2005, 2008 e 2015 - o último, inclusive, sendo muito polêmico por contar com o financiamento de um governo ditatorial. Ainda assim - e mesmo com o resultado ruim causado pela ausência de alas - a Beija-flor vê inovação e ousadia como a receita para mais um título, deixando de lado a “era das homenagens” e resgatando fórmulas usadas na era de Joãosinho Trinta (1976-92) e no título de 2003, quando abordou a questão da fome.    

A revolução Joãozinho Trinta

Duas coisas não faltaram na passagem de Joãozinho Trinta pela Beija-flor: bons resultados e polêmicas. Ele foi responsável pelo primeiro título da escola na história, assim como outros quatro, seis vice-campeonatos e apenas um carnaval fora das seis primeiras colocações: justamente o de 1992, último da azul e branca assinado por ele.

O carnavalesco, falecido em 2011, representou uma revolução para o carnaval, com a estética de suas fantasias luxuosas e desfiles que entraram pra história - por qualquer que tenha sido o motivo. O título de 76, primeiro da escola, teve como enredo “Sonhar com rei dá leão”, que homenageava o jogo do bicho.

O luxo de seus desfiles foi alvo de críticas e a resposta de João foi emblemática: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Mas a verdadeira resposta veio na avenida, em 1989. Com o enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, ele criticou todo o lixo existente no luxo, mostrando que era capaz de fazer um desfile impecável sem ser luxuoso. Não ganhou o título, mas promoveu um dos desfiles mais inesquecíveis que já passaram pela Marquês de Sapucaí, com a imagem do Cristo Redentor censurado com os dizeres "mesmo proibido olhai por nós" sendo praticamente um patrimônio da história do carnaval.

Sua última polêmica foi em 1992, com o enredo “Há um ponto de luz na imensidão”. O descumprimento da regra da LIESA que proíbe nudez explícita custou dois pontos à Beija-flor. Além da má colocação - um 7º lugar visto pela última vez em 1976, exatamente um ano antes de Joãozinho assumir - outros problemas pessoais contribuíram para que ele deixasse a agremiação.

Década de 90: poucos títulos e uma "crise de identidade"

Após a saída de Joãozinho Trinta, a escola praticamente passou por uma crise de identidade. No primeiro carnaval sem o carnavalesco, o desfile assinado pela professora Maria Augusta se mostrou competente e conquistou o 3º lugar, mas foi morno e com a sensação de faltar “a cara” da escola. No ano seguinte, o carnavalesco Milton Cunha assumiu e permaneceu até 1997, mas sem nenhum título. O único título da década de 90 viria em 1998, quando assumiu a comissão de carnaval.

A era das homenagens e a maior campeã do novo milênio

Após a chegada da comissão de carnaval e a vitória do enredo “O mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu”, a Beija-flor foi vice-campeã quatro vezes seguidas. Em compensação, nos anos seguintes, a escola conquistaria sete títulos.

A vitória, que estava engasgada, veio com um enredo que abordava mazelas sociais e a fome - “Saco vazio não para em pé”, trazendo inclusive um carro alegórico representando o recém-empossado presidente Lula. Esse seria, até então, o último desfile de teor crítico e social apresentado pela escola. Teve início a “era das homenagens”. Os dois desfiles (e também títulos) seguintes, um sobre a Amazônia e outro sobre o Rio Grande do Sul, contaram com patrocínio - o que não foi uma tendência somente da escola nilopolitana.

Último carro da escola homenageava o então presidente Lula. Foto: Blog Ouro de Tolo

Nos demais enredos dessa era, três em específico foram alvos de críticas e envoltos por polêmicas: em 2013, patrocinada pela Associação de Criadores, a escola homenageou a raça de cavalos mangalarga marchador, ficando com o vice-campeonato. Em 2014 o homenageado foi Boni, com um enredo sobre comunicação. O resultado deixou a agremiação fora do desfile das campeãs pela primeira vez em 22 anos. Em 2015 a Beija-flor se recuperou, vencendo com um desfile irretocável - mas sendo duramente criticada por homenagear e receber uma doação de R$ 10 milhões de um governo autoritário.

Tirando a vitória em 2015, os resultados dos últimos anos não corresponderam às expectativas de uma comissão de carnaval que já chegou a ganhar cinco títulos em seis anos. Essas questões, somadas ao momento político conturbado, com a própria realização do carnaval sofrendo ataques, fazem com que não faltem razões para que a Beija-flor saia de sua zona de conforto e arrisque com um enredo crítico em busca de seu 14º título. 

Além da Beija-Flor, Paraíso do Tuiuti, Portela e Mangueira trazem enredos que prometem promover reflexões na avenida. Tuiuti busca permanecer na elite do carnaval questionando se a escravidão realmente acabou - discussão que também já foi levantada pela Mangueira, em 1988. A azul e branca de Madureira busca o bicampeonato falando sobre a imigração, enquanto a Mangueira vem com o enredo mais explicitamente político. Em “Com ou sem dinheiro, eu brinco”, a verde-e-rosa faz uma clara referência aos cortes de verba sofridos pelas agremiações.

Com uma história recente marcada por anos em que houveram recordes de desfiles patrocinados, essas escolas podem fazer o carnaval de 2018 ser relembrado como um dos mais críticos e politizados da história.