Compactação. Linha alta. Marcação por zona. Marcação-pressão. Superioridade numérica. Último terço do campo. Quem tem acompanhado as recentes entrevistas de técnicos considerados modernos com certeza já ouviu ao menos um desses termos. Embora alguns torcedores prefiram se manter alheios à evolução, essas expressões estão ganhando cada vez mais espaço no linguajar futebolístico.
Porém, mesmo que os treinadores venham apresentando novos conceitos que fogem à cultura nacional, ainda há um certo desinteresse da imprensa esportiva em abordar o assunto de forma mais aprofundada. Em meio a matérias sobre rumores do mercado de transferências, crises internas, saída de técnicos e até "memes", é notável encontrar veículos e jornalistas dispostos a produzir conteúdo acerca da estrutura do jogo.
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No entanto, em contrapartida aos que preferem se manter imersos em épocas passadas, há profissionais na imprensa esportiva brasileira que se interessam em analisar e debater o futebol "fora da caixinha". O jornalista André Rocha é um deles.
Na descrição de seu blog no UOL, André avisa que "entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte". Em conversa com a VAVEL Brasil, o jornalista defendeu a tese de que o desinteresse pelo assunto é uma questão cultural.
"Quem entra na editoria dos esportes por vocação sonha com diversão e liberdade. Cobrir os grandes eventos esportivos e ainda receber por isso. E lá na escola e no pré-vestibular normalmente odiavam números e as aulas de Física. E aí quando se fala em 4-1-4-1 e em 'profundidade', 'amplitude' é como se ligasse uma sirene em suas cabeças. Resgata um trauma. Então é melhor seguir com as velhas ideias que sustentam o velho ideal", opinou.
"Criou-se um ciclo vicioso que não consegue responder as perguntas 'por que time x venceu?' e 'por que time y perdeu?' sem sair do 'faltou raça', 'o craque decidiu', 'apito amigo' e outras explicações incompletas" - André Rocha
Segundo André, os games de futebol se tornaram uma forte ferramenta à geração que se interessa por questões táticas e dinâmicas do jogo.
"Com a era da informação e dos videogames, surgiu uma nova geração que passou a se interessar primeiro pelos desenhos táticos, depois pela dinâmica do jogo, sem aceitar os velhos chavões, como 'venceu porque é time de guerreiros', 'perdeu porque o técnico é burro e o elenco tá desunido'. Mas ainda é um nicho muito pequeno e não motiva as grandes empresas de comunicação a investir mais neste segmento, com ótimas e honrosas exceções", observou.
Análise de desempenho
"Eu acredito, de fato, que aos poucos a gente tem conseguido mudar a cultura de quem assiste futebol". Assim Renato Rodrigues, ex-analista de desempenho do Corinthians, avalia o trabalho de toda a equipe que produz conteúdo para o DataESPN, departamento de análise da ESPN Brasil.
Apaixonado por futebol desde a infância, Renato sempre tentou enxergar o jogo além dos velhos clichês impostos pela mídia. Formou-se em Jornalismo e virou setorista do Corinthians pelo Lance!. Lá, chamou a atenção de Tite e sua comissão técnica, que o chamaram para integrar o setor de análise do clube paulista.
"Muita gente acha que ser analista é, simplesmente, fazer alguns cursos. Mas é o tipo de coisa que demanda tempo e vivência" - Renato Rodrigues
Depois de realizar uma série de cursos e mergulhar cada vez mais nesse mundo, Renato foi além: apresentou um projeto inovador para a ESPN Brasil, o DataESPN, que comprou a ideia em meados de 2015.
"Temos tido um feedback bem legal dos fãs de esporte. É um projeto que, se no início trouxe muita curiosidade, hoje já alcançou uma credibilidade legal dentro do mercado. O maior retorno que podemos ter é quando alguém, através de uma análise, consegue entender melhor uma situação específica e passa a visualizá-la daí em diante. Já recebi recados neste sentido e fiquei muito realizado. É um trabalho de formiguinha, de plantar sementes e ir cultivando-as. Acredito que, num médio a longo prazo, teremos muito mais realizações", avaliou.
O analista ainda apontou a imprensa esportiva como parte do processo de evolução do futebol no Brasil.
"Nós cobramos muito uma transformação no futebol brasileiro desde a Copa de 2014. Falamos muito disso no dia a dia. Mas nós somos parte deste processo. Somos formadores de opinião de pessoas que acompanham e consomem futebol. Podemos ser, sem dúvida alguma, um canal para elevar o conhecimento sobre o jogo de quem tanto o ama. Isso não quer dizer que vamos tirar a paixão do torcedor, mas sim dar mais embasamento para ele tirar suas próprias conclusões. Garanto que, quanto mais você conhece o fundo se aprofundando no assunto, mais você passa a gostar", afirmou.
Muito estudo
A Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil, foi um sucesso e até ganhou o apelido de "Copa das Copas". Mas os estigmas deixados após a goleada sofrida para a Alemanha, por 7 a 1, no Mineirão, na semifinal do Mundial, ligou a sirene para o futebol brasileiro.
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Começou-se a discutir mudanças na engrenagem do esporte mais popular do país para que ele voltasse ao topo. E parte dessa mudança passa pela imprensa. Gustavo Fogaça, comentarista da Rádio Gaúcha e analista de desempenho licenciado pela CBF, destacou o estudo para quem trabalha com o futebol.
"Na vida, precisamos sempre nos atualizar e estudar para evoluir. O conhecimento não ocupa espaço. E os 10 a 1 da Copa de 2014 [sete contra a Alemanha, na semifinal, e três ante a Holanda, na disputa do terceiro lugar] deu uma chacoalhada em quem faz o futebol brasileiro. Dos atletas aos dirigentes, passando pela imprensa. E este processo é irreversível. Quem não estudar e não compreender o esporte – e claro, saber contar isso – ficará de fora", avisou.
"Fui atrás do conhecimento, me preparei e agora me dou conta que eu sei muito pouco ainda. Não pretendo mais parar de estudar e de evoluir na análise dessa grande paixão que é o futebol" - Gustavo Fogaça
Fogaça ainda enfatizou a participação dos cartolas na administração do futebol. Para o analista, os dirigentes precisam buscar especializações a fim de melhorar as condições da modalidade.
"O começo e o final de todos os problemas no futebol passam pelos dirigentes. Eles que contratam, despedem, decidem, organizam, dão as pautas do dia a dia dos clubes. Enquanto não houver especialização dos dirigentes, seguiremos com os clubes vítimas de feudos familiares, de oportunistas, de grupos políticos e de gente que, por mais que seja apaixonada pelo seu clube, só atrasa o processo de crescimento da entidade", ponderou.
"Há espaço para melhoria"
Treinador responsável por resgatar a paixão do torcedor pela Seleção Brasileira após um período turbulento com Dunga, Tite participou de uma palestra na sede da CBF, no Rio de Janeiro, na última segunda-feira (8), para debater com outros técnicos o futuro do esporte mais popular do mundo.
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No evento, intitulado "Somos Futebol: 2ª Semana de Evolução do Futebol Brasileiro", Tite sugeriu mais bate-papos entre técnicos e jornalistas para maximizar a troca de ideias sobre futebol. "Aqui fica uma sugestão: tem um espaço para melhoria muito grande na relação técnico e imprensa. Há um espaço para nós melhoramos muito. Talvez nós realizarmos uma conversa, um simpósio, sei lá, para que haja um pouquinho mais de aproximação com ideias e autonomias", disse.
"Eu passei a ser muito interessado nessa questão que não me limita somente aos 90 minutos e ao dia do jogo. Eu acho que tudo é uma estrutura, bem complexa, e quanto mais você conhecer, saber como funciona, mais você estará apto a ter mais propriedade a falar" - Léo Gomide
Léo Gomide, repórter da Rádio Inconfidência, também concorda com o ex-técnico do Corinthians. Graduado no curso Gestão Técnica no Futebol, da Universidade do Futebol, o jornalista viu a necessidade de buscar mais conhecimento na área esportiva.
"No curso que eu fiz, nós aprendemos que o clube é dividido em várias áreas: administrativa, jurídica, departamento de futebol... Mas, como fala o próprio curso, tudo é algo sistêmico; você não consegue dividir em partes, e cada parte precisa ter um resultado. Eu acho que quanto mais você abrange o seu nível de conhecimento, mais você está apto a comentar, opinar. Todo conhecimento é muito válido. Eu acho que o jornalismo necessita disso", explicou Gomide.
De acordo com a Universidade do Futebol, o curso de Gestão Técnica no Futebol "traz uma visão da complexidade que envolve a integração das áreas política, administrativa e técnica no futebol atual". O curso é indicado para quem busca ingressar no mercado do futebol ou profissionais que visam ao aprimoramento na área.
Literatura futebolística
Você já reparou no quão difícil é encontrar livros sobre futebol no Brasil? Preste atenção ao entrar em uma biblioteca: raramente encontrará publicações acerca do esporte mais popular do planeta nas principais prateleiras. A Editora Grande Área, no entanto, está disposta a mudar esse cenário.
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Em funcionamento desde novembro de 2014, a editora especializada em esportes já lançou seis livros, incluindo o fenômeno Herr Pep (Guardiola Confidencial, no Brasil), de Martí Perarnau. Segundo o editor da firma, André Kfouri, a comercialização da obra beira 20 mil exemplares vendidos.
O próximo livro que a Grande Área traz ao Brasil é Pep Guardiola - La Metamorfosis (Pep Guardiola - A evolução), também de Martí Perarnau. De acordo com a própria editora, o prazo de lançamento em terras brasileiras ocorrerá em menos de dois meses.
"Em termos de literatura, o futebol brasileiro está muito defasado em relação ao que existe na Europa. A Grande Área tem a intenção – ousada, é verdade – de promover a diminuição desse atraso" - André Kfouri
"Tivemos uma resposta interessante a respeito do público que pretendemos atingir, com quem interagimos principalmente em redes sociais. É uma comunidade fiel e participativa, que segue estimulando a Grande Área por novos lançamentos", salientou Kfouri, que revelou quais os procedimentos de avaliação da editora para escolher um livro estrangeiro e traduzi-lo à língua portuguesa.
"Vários aspectos: o assunto, o autor, a qualidade do texto, se é um livro novo ou se foi publicado já há algum tempo... Tudo é levado em consideração. Mas eu diria que o principal ponto é a colaboração que o livro pode significar para o avanço do debate sobre futebol entre leitores brasileiros. Em termos de literatura, o futebol brasileiro está muito defasado em relação ao que existe na Europa. A Grande Área tem a intenção – ousada, é verdade – de promover a diminuição desse atraso", destacou.
Jornalismo x entretenimento
Na última quarta-feira de abril, dia 26, o então técnico do Palmeiras, Eduardo Baptista, mostrou toda a sua irritação com a imprensa após a divulgação de interferências em relação à escalação do time. Irritado, o treinador, que foi demitido do Verdão no dia 4 de maio, chegou a dizer que "o futebol está parecendo uma revista de fofoca" e pediu por mais perguntas relacionadas ao futebol em si.
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Em meio à onda de entretenimento para caçar cliques, é normal que matérias sensacionalistas ganhem destaques em sites e portais. Leonardo Miranda, colunista do Globoesporte.com no Blog Painel Tático, analisou o atual momento do jornalismo esportivo.
"É muito simples: o próprio torcedor reconhece quando o jornalismo é sério, com conteúdo e responsabilidade. Mas se ainda existe jornalismo fofoca, é porque alguém o consome. Jornalismo, assim como qualquer elemento dentro de uma sociedade capitalista, vive para gerar lucro. É preciso uma mudança cultural no torcedor também", ressaltou.