O futebol que hoje conhecemos, praticamos e consumimos surgiu na segunda metade do século XIX, no Reino Unido. Historiadores costumam assemelhar suas características às de jogos disputados na Antiguidade, como o cuju, na China, o kemari, no Japão, o harpastum, em Roma, e o episicyros, na Grécia. Contudo, a incidência dessas modalidades no esporte mais popular do mundo moderno é bastante discutível, tendo em vista que a Grã-Bretanha não possui vínculos com esses povos.
Dadas as devidas proporções, as partidas de futebol podem ser comparadas às de xadrez no sentido de haver estratégias que visam surpreender o adversário. A essência do planejamento do futebol no campo de jogo são os chamados esquemas táticos, frutos de muitas discussões e debates, seja na rua, em mesas de bar ou em mesas redondas de programas esportivos.
Desde o surgimento em território britânico, a modalidade passa por evoluções no modo de pensar e praticar o jogo. Antigamente, a posição mais requisitada era a de ataque. Talvez isso explique a maior incidência de placares mais dilatados. Atualmente, há uma maior preocupação em se defender. Nesse panorama, confrontam-se ditos populares do futebol: “A melhor defesa é o ataque”; “O melhor ataque é a defesa”. Mais do que isso, um jogador pode assumir determinadas posições, a depender das circunstâncias do embate dentro das quatro linhas.
Em artigo na Universidade do Futebol, instituição que pesquisa a área futebolística e propõe mudanças no ato de pensar, planejar e executar o esporte, o mestre e doutor em Ciências do Esporte pela Unicamp, Rodrigo Leitão, destaca que “por volta de 1863, o ‘esquema tático’ utilizado era o 1-8-8, e em 2006 as duas seleções finalistas da Copa do Mundo da Alemanha se utilizaram em boa parte dos jogos do ‘esquema’ 4-5-1, em que dos quatro da linha de defesa, alternadamente dois participavam de situações de ataque”.
“Os ‘esquemas táticos’ na verdade são ‘plataformas de jogo’ e não devem ser entendidos em suas partes (defesa, meio, ataque) para que se compreenda o todo, mas sim como sub-sistemas (dinâmicas, estratégias, táticas e interações) que compõem o todo”, escreve Rodrigo. O teórico do futebol, que recentemente assumiu a coordenação das categorias de base do Corinthians, sublinha: “Devemos compreender as interações constantes no todo de acordo com as dinâmicas e situações de jogo”.
Para a jornalista Nathalia Araújo, ex-redatora do Bayern Central e blogueira do Bundesliga Brasil, a evolução das ideias táticas contribuiu para a renovação do futebol e permitiu uma maior aproximação entre quem joga e quem assiste, no sentido de compreender e gostar do que é apresentado nas partidas. “É praticamente impossível um esquema tático permanecer para sempre, porque outros técnicos e outros times acabam descobrindo uma ‘fórmula’ para quebrar esse ‘esquema’”, comenta a carioca.
Torcedora do Botafogo e do Bayern de Munique, ela recorda a época em que o clube alemão foi treinado pelo espanhol Pep Guardiola: “Com aquele toque de bola ‘para lá e para cá’, outros times descobriram que se jogassem fechadíssimos, seria muito difícil o Bayern conseguir algo. O Guardiola dificilmente aposta em bolas longas e em cruzamentos à área para alguém tentar cabecear. Ele tinha a preferência de entrar na área ou tentar o chute de uma menor distância possível”. Nathalia acredita que a renovação das estratégias de jogo é importante para evitar a monotonia dos confrontos em campo.
A comunicadora defende que as análises táticas devem se aproximar da linguagem do torcedor, pois esse assunto é indispensável para quem acompanha futebol, independentemente do nível de conhecimento da pessoa.
Nathalia não titubeia ao afirmar seu estilo de jogo preferido. “Gosto de time que joga para frente, que aproveita os contra-ataques e pega o adversário de surpresa. Já vi muitos jogos do Botafogo em casa em que o time jogava na retranca mesmo brigando por topo da tabela, e eu não gosto disso”, revela.
Ela também elenca os técnicos que considera revolucionários. “Os técnicos que, para mim, representam a revolução tática são Menotti (César Luís Menotti, técnico campeão mundial com a Argentina em 1978), Arrigo Sacchi (bicampeão europeu com o Milan e vice-campeão mundial com a Itália), Rinus Michels (multicampeão com o Ajax) e, claro, Johan Cruyff (considerado um revolucionário na dinâmica do jogo tanto como jogador quanto como treinador e ídolo de Ajax, Barcelona, Feyenoord e seleção holandesa). E, mais recentemente, o Guardiola. Por mais que eu tenha minhas implicâncias com ele (risos), não dá para negar que ele também foi um revolucionário. Gosto muito de Sepp Herberger (técnico campeão do mundo com a Alemanha em 1954), embora seja uma coisa mais passional. Mas ele fez um trabalho técnico muito bom, pois conseguiu ‘quebrar’ a seleção que, na época, era a melhor do mundo (Hungria)“, finaliza.
Ex-jogador do Centro Limoeirense e hoje dono de um moto-táxi em Limoeiro, no Agreste de Pernambuco, Airton Burégio acredita que, com o passar do tempo, a evolução tática desconstruiu as “entidades místicas” do camisa 9 - o atacante de referência, popularmente chamado de “centroavante” - e do camisa 10 - o popular “meia de ligação”, responsável por planejar e executar jogadas de transição entre defesa e ataque e carinhosamente chamado de “maestro”.
Nessa questão, o administrador se mostra mais conservador. “Se você cruza uma bola, seja pela direita ou pela esquerda, rasteira ou pelo alto, o camisa 9 vai estar lá na pequena área para cabecear ou chutar. Ele prende dois zagueiros e faz pivô. Então, para mim, é muito difícil um camisa 9 fazer tudo isso e ainda voltar para marcar. Todo time tem que ter um 9”, argumenta.
“Já o camisa 10 tem que jogar na intermediária, próximo à área adversária, para dar chance ao centroavante e aos outros jogadores que chegam ao ataque. Hoje os treinadores botaram na cabeça que ele tem que jogar na intermediária defensiva e lançar a bola para o extremo (jogador que atua pelos lados do campo) ou para o atacante. Eu não concordo com isso. Acho que ele tem que jogar mais à frente e não voltar para marcar”, completa.
Mesmo com tamanho saudosismo, o torcedor do Náutico também vê pontos positivos no futebol moderno. “Jogadores habilidosos, capazes de fazer jogadas individuais e decidir jogos, são importantes. Mas hoje vemos que o coletivo está cada vez mais importante, e ele precisa ser trabalhado. É isso que falta a muitos técnicos daqui do Brasil, por isso vemos cada vez menos treinadores brasileiros fazendo sucesso lá fora. E o jogador precisa ser taticamente trabalhado desde a base”, pontua.
Seu Airton dedica boa parte do tempo para analisar equipes das mais variadas épocas e comparar as estratégias e o estilo de jogo delas. Gentilmente, ele nos cedeu parte do seu material de estudo.
O estudante de jornalismo Raí Monteiro, que escreve para o portal Taticamente Falando, coloca o preenchimento de espaços nos setores do campo como o principal ponto da evolução tática. Essa técnica consiste numa numa visão de jogo mais ampla e numa marcação mais dinâmica e mais intensa; à ela é comumente atribuído o termo “compactação”, palavra bastante utilizada pelo atual técnico da Seleção Brasileira, Tite - personagem da foto que abre esta reportagem. “Hoje jogamos o que chamo de ‘futebol do futuro’. Creio que daqui a 20 ou 30 anos a linha será parecida: cada vez menos espaço, batalhas para criar chances de gol, alta intensidade nas disputas e todos em campo jogando. Acredito que ‘compactação’ e ‘intensidade’ serão palavras cada vez mais usuais no meio”, comenta Raí.
Outra questão colocada por Raí é a mudança na disposição tática das equipes. “Assim como o jogo em si, os aspectos táticos evoluíram muito com o passar dos anos. O Arsenal de Hebert Chapman, nos anos 30, jogava em um esquema conhecido como ‘WM’, com dois meias ofensivos e mais três atacantes. O Brasil de Zagallo, em 70, trouxe um 4-3-3 clássico, com funções e posições bem definidas. Até que chegamos ao 4-4-2 do futebol inglês e suas derivações, como 4-2-3-1 ou 4-1-4-1. De cinco jogadores com funções ofensivas nos anos 30, passamos para três em 70 e chegamos à tendência de apenas um homem avançado”, relata.
A grande tendência do futebol atualmente, por exemplo, é a linha de defesa formada por cinco jogadores. Essa ideia pode se complementar com a tática do único homem de ataque, exposta por Raí. Disciplina para proteger o setor defensivo, inteligência para construir jogadas e velocidade para atacar e concluir a gol acabam sendo os dilemas.
Ainda que a tendência do futebol moderno seja a “compactação”, o universitário reforça que a diversidade de filosofias é um dos atrativos do futebol. “Aprendi a apreciar diferentes estilos de jogo e talvez, mais do que isso, entendê-los. Porque aquele que se fecha e contra-ataca, como o Real Madrid campeão europeu de 2014, também é bonito. Nesse caso, não existe certo nem errado. São ideias, conceitos. Embora a proposição e os movimentos de treinadores como Pep Guardiola (ex-técnico de Barcelona e Bayern de Munique; hoje do Manchester City), Jürgen Klopp (ex-Mainz 05 e Borussia Dortmund, atualmente no Liverpool) e Thomas Tuchel (ex-Mainz 05 e hoje do Borussia Dortmund) encantem, eles querem a bola e vão tentar vencer sempre a partir dela”, ressalta.
Por fim, o adepto do São Paulo e do Real Madrid acredita que o interesse do público por tática aumentou depois da humilhante derrota de 7 a 1 do Brasil para a Alemanha na semifinal da Copa do Mundo de 2014, em pleno Mineirão. “Depois do fatídico 7 a 1, hoje é muito grande o número de gente querendo discutir futebol, desempenho e coisas que fujam do senso comum e da discussão vazia. Entender de tática não é chato ou mega complicado. Na verdade, isso faz o torcedor ter uma opinião mais embasada, uma discussão mais lúcida e até um entendimento melhor de seu time”, pontua.